Protocolo #14 – Batom Vermelho

Dias 02,04,09 de Agosto

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A Fuga – 02 de Agosto de 2017

Que hoje eu passei batom vermelho!

A cena do batom que começou a ser estruturada na semana anterior ainda estava em foco nesse dia, porém bem avançada.  Mas o que é a cena do batom? Na dramaturgia ela é chamada de “ Dia da Visita”, o diálogo inicial passa exatamente por isso, onde as personagens discutem essa relação, apontando os conflitos referentes a elas e esse dia. Então por quê ficou tão forte para mim chama-la de cena do batom? O que aconteceu na verdade é que o batom virou um elemento estruturador para além do texto, que ao mesmo tempo em que esta inserido no universo diegético (onde uma dá o batom para a outra e se inicia o jogo) ele pode não estar, pois extrapola os limites da narrativa.  Para entender melhor sinto a necessidade de voltar ao primeiro dia de improvisação da cena.

Alê e Carla jogam a partir desse elemento, o batom. Um jogo de cena enquanto descoberta. Elas usam o batom de diversas maneiras, e também os beijos, que marcam o batom de uma na outra. A improvisação seguiu se não me engano por uns cinco minutos, até que uma das atrizes cortou o jogo. Diversos materiais interessantes surgiram logo nesse primeiro momento, e eu diria que partiram do elemento batom, porque sempre se voltava para ele, porque era ele muitas vezes entretia o olhar de alguma das atrizes durante a cena dando uma infinidade de visualidades, porque a ação partia dele, enfim…Não falo isso por uma supervalorização do batom, mas há algo de belo em perceber a operação da cena em relação as atrizes, o texto e ele.

O batom era ao mesmo tempo “limitador” pois tinha que se usar ele (não como uma obrigação, mas como parte do jogo) e ao mesmo tempo liberdade criativa, pois era base. Gosto de um trecho da Diretora Anne Bogart que fala dessa relação no momento de criação. Ela aponta que há uma certa violência nas escolhas desses elementos em cena, afinal a dramaturga de ‘A Fuga’ não escolheu nenhum outro objeto, (nem o diretor) e sim um batom, excluindo todas as outras possibilidades, um ato de escolha que pode vir por diversos motivos. Bogart diz que: “Articula-se diante das limitações: é aí que a violência se instala. Esse ato de violência necessário, que de início parece limitar a liberdade e diminuir as opções, por sua vez traz muitas outras alternativas e exige do ator uma noção de liberdade” (BOGART, p.53)(…) “ Paradoxalmente, são as restrições, a precisão, a exatidão, que possibilitam a liberdade. A forma passa a ser um continente no qual o ator pode encontrar infinitas varrições e liberdade interpretativa” (BOGART, p. 52) E sinto que essa liberdade foi explorada neste dia, experimentando as diversas variações e poética da cena que surgiam de um simples (ou não) batom.

Uma dessas variações foi um lugar de brincadeira, as atrizes se divertiam, em alguns momentos pareciam sentir vergonha, riam, corriam, aceleravam o jogo, diminuíam a velocidade. Como em um pique pega. No pique pega você corre, cansa, analisa, começa a criar estratégias para pegar o outro, senti isso em cena, que muitas vezes transbordava pelo olhar. Seus olhares me traziam falas internas onde talvez uma pensava “Agora vou te pegar/ vem pra você vêr/ Olha como o cabelo dela ta bonito hoje/ Ela ficou linda de batom/ Não corre de mim/ Agora pego ela de surpresa”, não que as atrizes pensassem isso ou devessem pensar, em hipótese alguma, mas eu enquanto espectadora naquele momento, me senti na liberdade de me deixar levar pelo jogo, e perceber as diferentes interpretações e sensações que me causavam. A brincadeira estabelecida nos fazia flutuar para espaço que não a cadeia, para uma espera não mais da visita, poderia ser de qualquer coisa.

Na quarta a cena já estava mais desenhada, já tinha perdido seu caráter experimentações livre, era uma experimentação direcionada (se não me engano a cena foi trabalhada no sábado também, mas não tenho certeza). Ainda como falei acima, a cena continuou nos levando para este tempo espaço que não mais a proposta da narrativa, quase que uma desvinculação, que pode ser interpretada de forma lógica como: isso está acontecendo apenas na cabeça delas/ é um sonho/; ou sem precisar de uma justificativa de encenação. Talvez seja ao mesmo tempo as duas opções, ou talvez a segunda leve a primeira. O que quero apontar é a autonomia do jogo, sua independência.

A cena agora acontece de modo crescente, as ações estão mais desenhadas, mas acredito que as visualidades dos olhares que citei, permaneceram mesmo que sutilmente.

Como uma montanha russa, a cena pega embalo, e vai por outros caminhos, mas ainda partindo do batom. Quando Mirela oferece o batom para Ana, Ana para e o olha (o que passa em sua cabeça?) Depois Mirela pega o batom e passa em Ana. Ana pega o Batom e passa Mirela. As duas pegam o batom várias vezes e passam nelas mesma, e beijam, e marcam os corpos, e passam mais batom, e riscam os corpos com o batom, e mancham as marcas do batom, a cena caminha para uma sedução, e então elas se beijam deliberadamente pela primeira vez, tornam a jogar e finalizam.

O beijo de Mirela e Ana. Discutimos se este era o primeiro beijo delas. De início pensei que elas já haviam se beijado outras vezes, por diversos motivos que já conversamos que acontecem nas cadeias, seja para suprir um desejo sexual, seja por real atração, enfim, sendo assim, acreditava não ter uma necessidade de valorização deste momento. O ato de não ser o primeiro beijo, me traz a reflexão de naturalidade, de algo que já acontece regularmente. Mas não, este de fato é o primeiro beijo entre as duas. Foi apontado que este primeiro beijo não deveria ser um beijo roubado, e sim um querer de ambas as partes, as duas querem, as duas beijam.

Mas voltemos ao batom. Conversamos um bom tempo sobre as imagens que o uso do batom e principalmente o batom vermelho podem levantar. O batom vermelho já foi e ainda é, alvo de associações vulgarizadas, mulheres que usam batom vermelho são chamadas de piranhas, em outros casos mulheres negras não podem usar o batom vermelho, pois não combina com o tom de sua pele. Mas também é lugar de independência, de poder, seja por infligir o pensamento da vulgarização e proibição, seja para assumi-los “ eu sou vulgar, e quero ser vulgar”.

O Batom vermelho, é um mar de possibilidades, que se ampliam no seu uso em cena. Ao mesmo tempo que vejo carinhos com marca de beijo, vejo marcas de agressão, que se borram e quanto mais se esfrega e tenta-se tirar, maiores e mais manchadas elas ficam (principalmente com batons vagabundos kkkk), vejo feridas da vida com as coisas que ouvimos devido ao batom vermelho e outras coisas, vejo o sangue das pessoas mortas pelas mãos dessas mulheres, e também vejo o sangue das mulheres mortas por batons vermelhos, vejo através da simbologia da cor VEREMLHO o amor, mas pelo mesmo motivo vejo o ódio. A carga complexa que o batom vermelho traz à cena, aponta para mim a complexidade das relações humanas, aponta a ‘multifacetareidade’ do ser que não é todo amor, que não é todo ódio, que não é todo beijo, que não é todo agressão.

 A Fuga – Dias 04 e 09 de agosto/ 2017

Dia 04 de agosto, sexta-feira, dia do ensaio aberto. Gostaria de começar o protocolo de hoje falando do ensaio aberto, mas isso não será possível devido a minha ausência. Então falemos do ensaio normal, sinceramente estava distraída nesse dia, estava no ensaio sem estar. Lembro que a luz foi pensada e testada para o ensaio. Alguns empecilhos impediam a luz ideal, mas algo me agradava naquela luz que comecei a vez, que cortava a atriz pela metade se ela ficasse em pé. Metade do rosto na luz, metade do rosto na escuridão.  Corpos que aparecem e desparecem de acordo com o que se movem. Nem sei se ficou assim pra apresentação do ensaio aberto ao público, mas aquela imagem que vi, ou pensei que vi tinha algo de belo, desenhava a poesia da cena, que fazia menção as grades das celas, as luzes que entram cortadas; lembrava a clichê frase do sol nascendo quadrado, que deixa os corpos quadrados, provavelmente a cabeça e os sonhos também.

Mas vamos para um dia em que estava mais presente. Dia 09 de agosto, quarta-feira, Carla estava viajando. Pegamos a cena em que Ana faz a oração. Primeiro uma improvisação livre com base nas rubricas, acompanhado o texto. Acho fascinante quando a partir disso o Dinho vai parando a cena, e desenhando junto dela, e o mesmo Alê, que mesmo tendo escrito o texto, tem imagens que lhe impulsionam em cena a fazendo criar, nos mínimos detalhes.

A cena em questão Ana está orando, ou ao menos tentar orar. A nuança rítmica que a cena tomou desenhou ou desvendou algo quase que interno de Ana, transpassando uma aflição que desmorona através do ritmo estabelecido na voz, movimentação corporal e na disposição espacial. Não lembro a ordem dos fatores, como a coisa era e como ela passou a ser, mas sei que Alê finalizou a cena de costas, um ato íntimo. O público (no caso eu), se sente invasor, não deveria estar ouvindo a sua clemência, o seu agradecimento, a sua conversa. Não me recordo o momento em que ela se vira, mas há um momento, o exato momento em que deixo de ser invasora, e passo a ser cumplice de sua dor e de sua Clemência (Se não me engano é no momento em que ela desiste de agradecer).

“SER PRESA É TER GRADES NO CORPO INTEIRO”

É o exato momento de identificação que já a tanto falamos, que amplia para além da cadeia. Ela fala do esquecimento. Quem não foi esquecida? Da solidão. Quem não se sente só? É um encontro não entre Ana e Deus, mas entre ANAS! Entre Ana e Maria, entre Ana e ela mesma, entre Ana e eu, entre Ana e todas nós.

Bom não pretendo me estender neste protocolo, estou tentando trabalhar a objetividade. Então vamos seguir.

Depois dessa relação estabelecida com a plateia, e identificação com a personagem. Ana desiste e desaba orando a “Salve Rainha”, lembro dela caindo o volume, e a ouvíamos apenas balbuciando a oração, não era possível entender muita coisa, assim o meu impulso inicial era orar, e não por ser religiosa nem nada, pois não sou, mas o fato de saber a oração, e perceber o seu desespero, me tira a necessidade de entendimento da palavra, pois a cena extrapolou o seu sentido, nesse momento a cena transpassa o “ Salve rainha mãe de misericórdia”, e aponta a construção das nuances dessa cena.

Dinho sugeriu que ouve-se uma sobreposição nesse momento da oração, uma sobreposição corporal onde Carla se movimento no fundo (uma movimentação de uma outra cultura) enquanto Ale faz essa oração. Lembrei de Pentagrama no momento em que dois atores ficam no centro conversando, e os demais em volta trabalhando a movimentação. Mas além disso me veio a imagem, ainda indo de encontro com a não necessidade de entender a oração, de utilizar da polifonia onde as vozes das duas se sobrepõe em desespero pela solidão, pela agonia, pela saudade, pelo medo, e por qualquer coisa. Uma sobreposição entre culturas e deuses diferentes, onde cada uma se agarra onde pode para continuar seguindo.  Outra imagem que me vem a partir da polifonia é ampliação para além das celas da duas. As outras presas também oram, e clamam pela ajuda dos mais diferentes deuses, todas ao mesmo tempo, cada uma em uma oração, cada uma em língua. Onde talvez todas clamem por ajuda ao mesmo tempo, e ninguém é ouvida!